Leia a primeira crônica do livro:
Ladeira abaixo
O prédio tinha 20 andares. A garagem ficava no primeiro e a entrada no térreo, virando a esquina. Havia três elevadores na construção. Naquela segunda-feira, o senhor de bigode tinha uma consulta marcada com a dentista e, às 14h, seu genro e sua neta esperavam no carro parado em frente ao edifício onde o sogro morava. Ninguém diria que as paredes conhecidas há cinco anos se tornariam labirinto para o morador do condomínio.
Preocupado com a pontualidade, o genro ligou para avisar que estava a postos e o sogro respondeu que estava se encaminhando à porta. Um minuto se passou, dois, três, cinco, dez, e nada dos passos arrastados do senhor de bigode serem avistados da portaria. Seu genro já se alertava. Teria ele tropeçado e caído? Ligou de novo. Fazia tempos que ele havia descido. “Cadê ele?”, a família se perguntava de dentro do veículo.
Pelo olhar periférico, um movimento foi percebido na rampa da garagem em espiral. Passo a passo, bem devagar, o senhor de 84 anos descia a ladeira íngreme, com cuidado para a sandália de borracha não derrapar e causar uma queda sem freios até o portão de ferro, um andar abaixo. A notada desorientação seria cômica se não fosse um sinal do início de um problema que eles não tinham como solucionar. Quem assistia ria, meio por graça, meio por desespero.
“Por que desceu pela rampa da garagem?”, indagou o genro quando ele finalmente conseguiu entrar no carro.
“Sei lá…”
“Apertou o botão errado do elevador e não soube voltar pro andar certo?”
“É, foi”, respondeu sem certeza.
Pelo retrovisor, pai e filha seguiram se entreolhando. Era difícil de acreditar até então, mas o velho conhecido não conseguia sair sem ajuda. A partir daquele dia, qualquer carona oferecida passou a ter a garagem como ponto de partida. Subir da rampa com o carro pareceu a melhor saída para evitar acidentes, uma vez que aquele era o caminho mais executado. Na mesma tarde, ao chegar à dentista, ele também não recordou o motivo da consulta.
ONDE ESTÁ O GARFO
Onde está o garfo é um livro que reúne 30 crônicas sobre a vivência de mulheres que assistem ou precisam lidar com a doença de Alzheimer. O conteúdo foi concebido após seis meses de acompanhamento de um grupo de apoio a idosos com Alzheimer e entrevistas com quatro cuidadoras. Organizadas em três capítulos remetentes às fases da doença - inicial, intermediária e avançada -, as crônicas têm o objetivo de compartilhar vivências rotineiras e pouco comentadas coletivamente sobre o reflexo do Alzheimer na vida de quem tem a doença e, principalmente, de seus familiares, seguindo um recorte de gênero, raça e classe durante a apuração.
O livro será lançado em julho pela editora Vaza-Barris, dirigida por Rafael Amorim e Daniel Quintiliano.